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Eli Vieira (Biólogo, Geneticista)

Eli Vieira (Biólogo, Geneticista)

 

CRÉDITOS: TODOS os textos a seguir são do Biólogo e Geneticista Eli Vieira e, portanto, TODOS os créditos são do Eli Vieira. 

 

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CIÊNCIA, POLÍTICA IDENTITÁRIA,

TRANSEXUALIDADE,

AÇÃO AFIRMATIVA E RELATIVISMOS

24 / fevereiro / 2019

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O texto a seguir é do biólogo e geneticista Eli Vieira, o qual originalmente foi uma entrevista publicada em 30 de janeiro de 2019 pela GAZETA DO POVO (acesse o site), entrevista feita pelo mestre em filosofia Francisco Razzo sobre o tema "Mesmo depois de tudo isso, ainda permanecemos tribais". Esta entrevista está também publicada no site do Eli Vieira (acesse o site) com o título "Ciência, Política Identitária, Transexualidade, Ação Afirmativa e Relativismos." 

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(texto original)

Francisco Razzo: Minha coluna desta semana traz entrevista com o biólogo Eli Vieira, que nos últimos anos tem feito críticas contundentes e consistentes ao relativismo pós-moderno e às políticas identitárias. Para não dizer que só entrevisto pessoas que concordam comigo, Eli Vieira e eu já tivemos oportunidades de debater a questão do aborto e do ateísmo. Temos visões diametralmente opostas a respeito desses temas e nem por isso deixamos de trocar boas ideias.

A propósito, umas das coisas mais importantes que eu aprendi estudando filosofia foi conseguir conversar com pessoas com ideias diferentes das minhas. Não que eu tolere tudo, não sou Gandhi ou Madre Teresa e não faço meditação; dependendo do assunto, meu pavio é bem curto. Mas estou longe de querer ouvir só a minha “patota ideológica” — confesso que não é tão difícil lembrar que a possibilidade de estar errado é uma boa maneira de cultivar a sabedoria.

Nesta entrevista você terá a oportunidade de conhecer uma visão muito provocadora sobre o atual debate da transexualidade, como a biologia pode nos ajudar a pensar a construção da identidade, por que o relativismo é simplesmente um absurdo, como as “minorias” devem ser protegidas e quais os riscos sociais das chamadas políticas identitárias — e, mesmo depois de tudo isso, saber por que ainda permanecemos tribais.

FR: Como você entende o atual debate da transexualidade?

Eli Vieira: É uma guerra de absurdos sendo atirados de todos os lados. De um lado, correndo à defesa das pessoas trans como cavaleiros correm ao socorro de donzelas em apuros em contos de fadas, temos pessoas pouco curiosas sobre o mundo real; aquelas que vivem no mundo das letras e, por isso mesmo, pensam que tudo se resume a esse mundo, tudo é linguagem. Confundem seu paroquialismo das letras com erudição, se radicalizam (como é de esperar em qualquer grupo pouco diverso em ideias), alegam que tudo é “construção social” num determinismo cultural ganancioso e não querem ouvir nada que venha das ciências empíricas. De outro lado, temos os simplistas, cujo entendimento de biologia se resume ao ensino básico: homem = XY; mulher = XX, isso é tudo o que há para dizer sobre o assunto, e querer saber mais é esquerdismo. Parece que os dois grupos se unem na falta de curiosidade. Quanto mais polarização, menos curiosidade.

 

FR: Há um “lugar-comum” que diz que “a teoria de gênero não pode ter respaldo na biologia”; afinal, qual a importância da biologia na construção da identidade de gênero (se é possível falar assim)?

EV: Estou de acordo com a filósofa Helena Cronin: a invenção do termo “gênero” só nos atrapalhou a entender melhor o sexo. O sexo, em seres humanos, é um fenômeno complexo o suficiente para ter expressões sociais e culturais. Ceifar essas expressões de sua relação com a realidade biológica do sexo faz tanto sentido quanto alegar que “altura” e “estatura” não são sinônimos; que “altura” é a realidade biológica de quantos centímetros um corpo humano pode crescer e que “estatura” diz respeito a uma “estrutura socialmente construída de privilégios para pessoas altas e opressão para as baixas”, para usar um pouco do vocabulário carregado das áreas acadêmicas em que se confunde ativismo com pesquisa.

Um dos principais responsáveis pela adoção do termo “gênero” na psicologia, John Money (1921-2006), foi um pesquisador que recomendou criar o menino David Reimer (1965-2004) como menina, pois David havia perdido o pênis ainda bebê, num erro médico durante uma circuncisão. Money usou o caso para tentar provar que a identidade sexual depende apenas da criação e do ambiente cultural, em vez de ser algo com bases genéticas. A intervenção consistiu também num processo transexualizador, incluindo remoção dos testículos. Money estava errado. Reimer cresceu com disforia, talvez o primeiro caso de disforia de alguém que se identificava com o sexo de nascimento. Abandonou a identidade socialmente imposta de menina, teve uma vida difícil e cometeu suicídio mais tarde.

Uma ideologia popular nas humanidades, que é a que prega que tudo o que somos é construção social, corretamente cataloga todo tipo de crime já feito em nome das ciências empíricas: o movimento da eugenia envolvendo vários cientistas, a castração de pessoas de baixo QI nos Estados Unidos no começo do século 20, o racismo científico etc. Previsivelmente, não cataloga crimes cometidos em nome de seu próprio credo acadêmico da tábula rasa/construção social: além do crime de John Money, temos aqui também Pol Pot, Stálin e Mao Tsé-Tung, que explicitamente diziam que seus cidadãos eram folhas em branco e que, portanto, não havia uma natureza humana que oferecesse resistência aos princípios da revolução socialista (Jean-Paul Sartre, que foi stalinista e maoísta, é citado até hoje para defender que não existe natureza humana – acho que não é coincidência). Tanto o determinismo biológico quanto o determinismo cultural motivaram crimes contra pessoas inocentes.

Engana-se, no entanto, quem pensa que o caso David Reimer prova que sempre, sem falha, a identidade sexual saudável é a observada nas genitálias ao nascer. Estamos só começando a estudar a transexualidade, mas há dois bons motivos para considerar seriamente que é possível que algumas meninas nasçam com pênis e alguns meninos nasçam com vagina. O primeiro é que há uma independência temporal, no desenvolvimento do feto, da formação da genitália e da formação das partes do cérebro que diferem na média entre homens e mulheres. Enquanto a forma da genitália já se faz presente nos dois primeiros meses de desenvolvimento fetal, o cérebro só forma suas conexões neuronais, inclusive as importantes para a identidade sexual, da metade para o fim da gestação. Havendo essa separação temporal, é possível que haja alguma independência nas causas do sexo entre as pernas e do sexo entre as orelhas.

O outro motivo para acreditar que a transexualidade é natural é que, em muitas características, os homens são mais variados que as mulheres. Isso é verdade tanto para características físicas quanto psicológicas, como o QI. Aceitando que há bases biológicas por trás das diferenças de comportamento de homens e mulheres que fazem os dois sexos serem categorias sociais distintas, teremos de aceitar também que alguns homens podem se distanciar tanto da média de homens nessas bases, devido à maior variação masculina, que eles na verdade são mulheres no cérebro. E é por isso que há mais transexuais que se identificam como mulheres que como homens.

Há algumas pesquisas com transexuais indicando que isso é verdade: núcleos de uma parte do cérebro chamada hipotálamo dos transexuais são mais semelhantes ao sexo com o qual se identificam do que ao sexo indicado por suas genitálias de nascença. Já alguns outros estudos mostram que, em algumas características, o cérebro dos transexuais se assemelha ao sexo identificado ao nascer. Teremos de ter paciência e curiosidade para entender as pessoas transexuais, e o estudo delas revelará muito sobre o resto de nós.

Isso não é para dizer que todas as respostas estão na biologia, embora resposta nenhuma no assunto estará completa se ignorar a biologia. Na opinião de Alice Dreger, estudiosa dos intersexuais (hermafroditas) e crítica dos excessos do ativismo, um indivíduo que é um gay muito afeminado numa sociedade poderia ser uma transexual em outra sociedade – essa outra sociedade, ela pensa, seria menos tolerante ao jeito de ser desse indivíduo, fazendo com que ele (ou ela) precise dar “um passo à frente” na afirmação de sua identidade. É uma hipótese interessante e promissora, e em nada contraria a biologia.

De qualquer forma, os dois sexos (incluindo as variações raras dos intersexuais e transexuais) são mais semelhantes que diferentes: somos uma só espécie. E falar mais de sexo que de gênero me parece um bom ponto de partida para que a curiosidade e o respeito falem mais alto que a sanha persecutória das tribos políticas e o fervor moral dos ativistas cheios de certezas. Antes de agir, devemos saber.

FR: Quem acompanha seu trabalho sabe que você é um ferrenho crítico do relativismo pós-moderno; você poderia discorrer quais são as implicações do relativismo e por que é preciso combatê-lo?

EV: A forma mais resumida que eu encontrei para mostrar o problema dos relativismos é o que eu chamo de “a vingança das intuições”: Você pode alegar que não acredita em padrão universal de beleza, mas quando vê uma pessoa com aquela razão entre cintura e quadril, ou entre ombro e quadril, aquele timbre de voz agradável, e aquela pele saudável, sabe que fica impactado(a). Você pode dizer que moral é relativa à subjetividade, à cultura e aos tempos; mas, quando vê um animal sendo torturado, pensa que há algo de realmenteerrado naquilo e se esquece de qualificar “errado para mim” ou “errado para os brasileiros do século 21”, como mandam os relativismos morais. Você pode se pavonear de entendido e dizer que a ciência é só uma narrativa entre várias igualmente boas, que verdade é poder, que quem fala em “verdade” é positivista antiquado; mas, quando é acusado de um crime que não cometeu, quer que a verdade objetiva venha à tona, quer que a investigação seja imparcial, neutra e melhor que meras narrativas fictícias.

Relativismos são projetos falidos, cognitivamente insustentáveis, e seus defensores não se cansam de hipocritamente contrariá-los todos os dias das formas mais banais. A aderência insincera ou autoenganosa aos relativismos é mais uma bandeira política que um fruto do bom pensamento.

Se os relativismos um dia vencerem na disputa de poder, podemos dar adeus a todas as coisas em que esperamos que haja hierarquias baseadas em competência. Um artista não relativista tem uma lixeira cheia de rascunhos abortados. Um artista relativista bota qualquer rascunho na galeria. Um intelectual não relativista busca justificação para suas crenças que escape à sua subjetividade e ao paroquialismo em torno de si. Um intelectual relativista tem incentivo extra para querer ser julgado somente pela aclamação de seus pares, com todos os vieses que isso traz na bagagem.

FR: Na sua opinião, as chamadas “minorias” devem ser protegidas politicamente?

EV: À primeira vista parece que sim, se houver evidência de que são alvo diferencial de dificuldades que não ocorrem aos outros cidadãos – como é o caso dos deficientes, que precisam de rampas, textos em braile etc. Mas devemos saber disso antes de propor que o Estado interfira. A comparação com os deficientes é um balde de água fria proposital: antes de pedir favores do resto da sociedade, é preciso que perguntemos se alguma das outras minorias é mesmo comparável aos deficientes de alguma forma.

Isso não é para insultar as minorias (afinal, deficiência não é demérito), mas para deixar claro que os recursos são sempre finitos e que receber tratamento diferenciado requer motivos sérios como a deficiência. Talvez por saber intuitivamente disso, alguns dos ativistas da causa LGBT, por exemplo, insistem que o Brasil “é o país que mais mata LGBT”. Usam essa alegação para pedir, por exemplo, leis que limitem a liberdade de expressão em nome da causa.

Eu fui atrás da principal fonte dessa alegação, junto com colaboradores. Analisamos os dados. Concluímos que somente 7% do que essa fonte diz serem crimes homofóbicos se confirmam como tais. Portanto, há dúvidas de que o país é realmente tão ruim quanto alguns ativistas tentam fazer parecer com seu ativismo “Cidade Alerta”. Manter a liberdade de expressão intacta parece mais importante que chamar o Estado para agir com base em dados que não são dignos de confiança. Neste caso, a mim parece que a cultura está progredindo por si só, que o Judiciário já fez tudo ou quase tudo o que era necessário para haver igualdade perante a lei, e que, portanto, não há necessidade de clamar por mais Estado nesse assunto, ainda que haja ampla necessidade de a sociedade continuar conversando.

Os asiáticos nos Estados Unidos, hoje, estão se saindo melhor que a base étnica que fundou o país (anglo-saxões protestantes), e nisso não devem nada ao Estado. Na verdade, nos últimos séculos, o Estado serviu como obstáculo para eles. Eles são a prova de que programas de “ação afirmativa” não são necessários. Como um golpe de ironia, estão precisando processar a Universidade de Harvard porque políticas de ação afirmativa na seleção de alunos na instituição prejudicam os asiáticos por se saírem bem demais.

Os proponentes das ações afirmativas, portanto, têm o ônus de provar por que pensam que outras minorias são incapazes de sucessos similares sem que os critérios de admissão, seleção e competição sejam ajustados para elas. Como esses proponentes pensam que a diferença entre etnias é mais cultural que biológica (e eu tendo a concordar), precisam procurar explicações na cultura. Evidentemente, a explicação que sempre usam é que a cultura dominante discrimina injustamente as minorias. Essa explicação é verdadeira, mas ela não é a história completa, então há aqui o risco da “mentira por omissão”. Todo fenômeno sociológico tem uma miríade de fatores causais diferentes. Mas, como há dogmatismo político, se agarram à explicação do preconceito e acusam de preconceito quem quer aventar outras hipóteses. Essa é uma postura de inquisidor, não de investigador.

FR: Quais os riscos das “políticas identitárias” para o desenvolvimento do trabalho científico?

EV: Quando eu penso nas faces que eu via no Departamento de Genética da Universidade de Cambridge, lembro de todas as categorias identitárias que tantas pessoas tratam hoje como donzelas em apuros. Vi lá mulheres negras, mulheres muçulmanas com véu, cristãos, ateus, até transexuais (e digo “até” porque são bem menos de 1% da população, então não aparecem em muitos espaços por mero efeito do acaso – aí está uma explicação alternativa à obsessão de creditar tudo a preconceito!). A diversidade que observei ali era apenas um efeito colateral dos valores da instituição: estávamos ali porque nos interessávamos por genética e, por sorte ou determinação, conseguimos fundos para seguir nossos interesses.

Como o interesse em genética é bem distribuído em grupos de identidade e as pessoas são livres para tentar entrar lá, há diversidade identitária em quem tenta. Não sendo essas identidades critério de admissão ou exclusão, o resultado era um grupo fisicamente diverso. Como o interesse em matemática não é tão bem distribuído nas identidades quanto a genética, a cara da plateia nos seminários dos departamentos de exatas deve ser diferente. Certamente é mais masculina, pois os homens herdaram de seus ancestrais masculinos um cérebro mais propenso a se interessar por coisas e abstrações do que pelo tratamento de animais e pessoas. Há evidência científica para essa previsão de qual será a plateia. Pressões sociais para que as pessoas se conformem a estereótipos podem contribuir para manter alguns grupos menos presentes em alguns espaços. Mas pouca pesquisa rigorosa é de fato feita para mostrar o quanto disso está por trás do que observamos.

De qualquer forma, o que importa é que exista a liberdade de seguir nossos interesses, não que os interesses sejam artificialmente distribuídos na população, o que geraria mais profissionais desinteressados e desiludidos. As ciências são investigações que empregam métodos lapidados pela experiência das gerações passadas de cientistas. Os melhores cientistas eram genuinamente interessados em suas áreas, se atraíram naturalmente por elas. A moda ideológica da política identitária leva ao risco de tentar forçar a plateia dos seminários de matemática a ser mais parecida com a plateia da genética, atropelando liberdades e curiosidades genuínas no processo.

Portanto, é uma tendência preocupante para a pesquisa científica, tanto quanto discriminações “clássicas”, talvez mais preocupante que elas. Quando os geneticistas começarem a prestar muita atenção na identidade da colega que está falando, darão menos atenção ao conteúdo do que está dizendo e à qualidade do trabalho.

Pelo que indicam as evidências, não é o racismo, a homofobia, ou a misoginia que estão em grande parte nos genes, mas uma tendência ao tribalismo. Nós somos capazes de usar qualquer coisa, inclusive identidades políticas abstratas, para nos dividirmos em tribos, passando a agir de forma condescendente/simpática a quem consideramos confrades e de forma hostil/desconfiada a quem rotulamos como estranhos ao nosso grupo. São vieses de fábrica da nossa natureza. Podemos enfatizá-los ou desenfatizá-los, mas não nos livrar completamente deles. Insistir nos marcadores de identidade ao fazer política, indicam resultados replicados, é receita certa para exacerbar racismo, homofobia, misoginia etc. Ao menos em se tratando de marcadores de identidade que são ideias, mudar de ideia é possível, embora raro, quando o tribalismo tem essa natureza. Quando o tribalismo é baseado em características identitárias que não escolhemos e das quais não podemos nos livrar, o prognóstico de longo prazo é o desastre, mesmo que a intenção de curto prazo seja a defesa de oprimidos.

 

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"GENE GAY": COBERTURA DE NOVO ESTUDO

MOSTRA QUE A IMPRENSA NÃO APRENDEU

NADA EM 25 ANOS

31/agosto/2019

(texto original

No começo da década de 1990 o geneticista Dean Hamer teve o nome citado pela maior parte da imprensa ocidental ao propor que havia um “gene gay”. A verdade, é claro, era mais complicada. Hamer havia sido parte de um estudo que apontou que uma região do cromossomo X parecia estar significantemente associada à presença da homossexualidade em famílias. A cobertura fez um enorme desserviço à divulgação científica, mas Hamer partilha parte da culpa. Ele não aprendeu muito, pois na década seguinte lançou um livro que propunha no título um “gene de Deus”. Parece até que genes são feitiços do Harry Potter, que conjuram coisas complexas como crença em Deus e homossexualidade do nada, e sozinhos.

Saiu um novo estudo sobre a genética da homossexualidade, com uma enorme amostra, e tudo indica que a imprensa nada aprendeu em um quarto de século. A Globo News já interpretou tudo errado com esta manchete: “Estudo feito com DNA de quase meio milhão de pessoas conclui que não existe um gene que determine a homossexualidade. Ambiente, educação e personalidade influenciam escolha, dizem pesquisadores”. Para mim, ao menos, está claro que os jornalistas pegaram a notícia de segunda ou terceira mão, em vez de simplesmente abrir a página do estudo.

Desde 2011 estou aqui falando em público que QUALQUER comportamento é influenciado por um grande número de genes. Ninguém na genética espera que nem mesmo o reflexo patelar, um dos mais simples dos nossos comportamentos, venha de um gene só. O estudo definitivamente não é sobre isso e não teve o objetivo de derrubar a ideia de que um gene só causa a homossexualidade, pois ninguém na genética acredita nisso.

O novo estudo tem um ótimo tamanho amostral (mais de 470 mil participantes). Minha principal crítica a ele é que perguntar só se as pessoas já tiveram uma experiência sexual com alguém do mesmo sexo é uma forma imprecisa de aferir o desejo espontâneo delas. Entrevista é um método cheio de imperfeições.

Aqui entra o aspecto da personalidade. Se alguém é propenso a ter uma personalidade aberta a novas experiências (e esse é um dos principais 5 ingredientes da personalidade), esta pessoa pode fazer sexo com pessoas do mesmo sexo apesar de esta não ser sua principal preferência sexual.

Portanto, só perguntar se alguém fez sexo com alguém do mesmo sexo ao menos uma vez na vida não é um instrumento preciso para aferir a orientação sexual. Na verdade, é um método fadado a incluir heterossexuais na amostra. Além disso, sabemos também que os componentes da personalidade têm também base genética. A sugestão aparente de uma dicotomia entre personalidade e genes não faz sentido nenhum.

Aqui está o link do estudo original, que parece que jornalistas têm alergia de dar. https://science.sciencemag.org/content/365/6456/eaat7693 

A última frase do resumo diz tudo: “o comportamento não-heterossexual é poligênico“, não destituído da influência dos genes, portanto. Em momento algum o estudo sugere que a orientação sexual pode ser mudada pela via da educação. Não sei de onde a Globo News tirou isso.

 

SOBRE ÉTICA E POR QUE DOIS GRUPOS POLÍTICOS COMEMORARAM A MANCHETE QUE INDUZ A ERRO

 

Certo tipo de conservador quer que a homossexualidade seja resultado da cultura e escolhas, para facilitar a condenação moral dos gays. Pois, como disse Kant, “dever fazer” implica “poder fazer”. Só pode ser imoral comportamento que pode ser mudado de livre e espontânea vontade.

Ao mesmo tempo, certo tipo de progressista quer que a homossexualidade seja resultado da cultura e escolhas porque declarar tudo “construção social” faz parte de seu projeto de poder baseado na engenharia social, em moldar a sociedade à sua imagem e semelhança.

Pensando bem, os dois não são tão diferentes assim. Ambos os grupos põem seus projetos sociais e suas crenças sagradas na frente dos fatos.

 

SOBRE “COMPORTAMENTO”

Percebo que há uma confusão semântica sobre o que a genética do comportamento quer dizer com “comportamento”, também. É a mesma confusão do Malafaia. Não há, no tratamento científico do comportamento, qualquer pressuposição de que sua causa é ambiental/cultural/educacional.

Talvez essa confusão vem da influência do behaviorismo, um arcabouço teórico que dominou a psicologia na metade do século XX e pressupunha uma importância exagerada para o ambiente. Esse arcabouço, apesar do continuado protesto de alguns, já caiu, e o empurrão veio de dentro.

Comportamento é uma característica fundamental dos animais. É qualquer fenótipo que derive da atividade das células excitáveis: neurônios e fibras musculares. Ter um desejo não concretizado de sexo gay, portanto, ainda é ter um comportamento.

É este comportamento, concretizado em camas ou não, que é o real alvo da controvérsia sobre as origens da homossexualidade. São as pessoas que têm essa preferência, com predominância ou exclusividade, que são alvo principal do preconceito, também.

 

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IDENTIDADE DE GÊNERO E ORIENTAÇÃO SEXUAL:

MILITÂNCIA VERSUS EVIDÊNCIA

5/ junho / 2019

 

(texto original)

O que diz a militância:

Identidade de gênero e orientação sexual são coisas completamente separadas. Identidade de gênero é como a pessoa se vê (se homem, mulher, ou nenhum dos dois), orientação sexual é por quem a pessoa se atrai. Dessa forma, identidade de gênero e orientação sexual variam independentemente.

O que dizem as evidências:

Os fatores que causam a orientação sexual e a identidade de gênero são intimamente relacionados. Se não são os mesmos, ao menos a intersecção entre os dois conjuntos de fatores causais é grande. De outra forma não se poderia explicar por que, através das culturas, a maioria (90% ou mais) das pessoas são heterossexuais e mais de 99% não sofre disforia de gênero nem é intersexo.

Disforia é a sensação de sofrimento psíquico por crise identitária de quem não se conforma ao gênero com que foi rotulado ao nascer. Nos casos mais severos, manifesta-se bem cedo em crianças e pode levar à automutilação.

Pessoa intersexo era conhecida antes pelo termo “hermafrodita”, um termo bonito, que vem dos deuses gregos Hermes e Afrodite, termo que o politicamente correto – sisudo e sem poética – condenou ao ostracismo. 1 em 2000 pessoas são intersexo, apresentando variados graus de ambiguidade de características sexuais primárias e secundárias.

Claramente identidade de gênero é relacionada à orientação sexual também porque uma parte substancial (quiçá a maioria) de pessoas homossexuais apresentam alguma não-conformidade de gênero na infância e adolescência (em outras palavras: muitos homens gays foram meninos que já usaram vestidos, sapatos e maquiagem da mãe – é um indicativo, não uma sentença). Além disso, a maioria, entre 50 e 88%, das crianças que manifestam disforia a resolvem com o tempo sem transição para outro gênero. Isso sugere que a transição só é terapêutica para uma minoria das crianças que manifestam disforia. A maioria, que não cresce trans, geralmente é gay. Novamente: identidade de gênero e orientação sexual são intimamente relacionadas.

Isso contradiz a insistência de que tudo o que é necessário para considerar uma criança “trans” é que ela manifeste disforia. Na verdade, a probabilidade maior é que não seja trans, mas gay. Também contradiz a noção de que basta uma criança dizer que é de outro gênero para aceitar que é mesmo. Não é transfóbico pensar que há uma probabilidade substancial de ela não ser: é o resultado mais provável. Isso, obviamente, não é desculpa para forçar a minoria que cresce para ser trans a não ser trans: estamos falando aqui do resultado mais terapêutico para seu desenvolvimento, e repito que para 12 a 50% dos casos o melhor curso de ação é a transição. Se você acha que uma pessoa trans sofre (e geralmente sofre, disforia é horrível), imagine então como sofre uma pessoa que fez transição, retirou mamas, tomou hormônios, porque ouviu que essa era a sua única opção, e depois se descobre não-trans e tem que viver com resultados permanentes de uma decisão tomada sem clareza suficiente sobre quem ela é. É a minoria de transicionados, mas existem (a idéia não é proteger minorias?).

Disforia está correlacionada com outros trantornos psiquiátricos. Não se pode atribuir todos os problemas psíquicos das pessoas trans à resistência da sociedade à sua transição. Sim, há muita transfobia e sofrimento causado por ela. Mas há mais coisas. A narrativa de “nasceu no corpo errado” não se aplica a todas as pessoas trans.

Finalmente, para botar um último prego no caixão da idéia de que identidade de gênero e orientação sexual são totalmente distintas e não relacionadas, vou falar de um tipo de transexualidade que essencialmente é uma orientação sexual. Trata-se da autoginecofilia. Autoginecófilas são mulheres trans (nascidas com sexo masculino) que têm atração sexual por si mesmas como mulheres. O conceito é um pouco difícil de entender quando se ouve falar nele pela primeira vez, mas existe e já foi descrito pelo cientista do sexo Ray Blanchard em detalhes. As autoginecófilas, como as outras trans (estas mais próximas de “nascidas no corpo errado”), podem fazer a transição hormonal e genital como terapia. Não é um fetiche, mas uma orientação-sexual-identidade-de-gênero que é parte fundamental de quem elas são. Alice Dreger, estudiosa da intersexualidade e de conflitos entre pesquisadores e ativistas, descreve o caso de uma mulher trans autoginecófila que chegou a raspar cirurgicamente o osso acima da sobrancelha, e conta que teve uma sensação de êxtase quando, depois da cirurgia, nos banhos o xampu passou a escorrer dos cabelos e chegar aos olhos, irritando-os. Porque tomar banho com um “guarda-chuva natural” acima da sobrancelha formado por esse osso seria coisa de homem. Alice, que é mulher nascida com vagina, diz que em toda a sua vida como mulher nunca tinha pensado nisso. Conto a história não para apontá-la como bizarra, mas para apontar o quão profunda é a identidade feminina para uma trans autoginecófila, tanto quanto para outras trans. (Outra evidência de que há ao menos esses dois tipos de mulheres trans é que as autoginecófilas tendem a gostar de mulheres e as outras tendem a gostar de homens.)

Portanto, enquanto ainda há muita ignorância sobre as origens tanto da orientação sexual quanto da identidade de gênero, está claro o suficiente que os dois conceitos são separados apenas para facilitar a compreensão de certas questões (ou por dogmatismo de ativistas), mas o mundo em si não os separa tão bem assim. Se engana quem pensa que não têm nada a ver com biologia, ou quem pensa que têm a ver apenas com biologia – os mais astutos devem ter percebido que a mulher trans de uma cultura pode ser o homem gay de outra.

Referências

Sobre a provável maioria das crianças disfóricas não transicionar, vide Associação Psicológica Americana. https://www.apa.org/practice/guidelines/transgender.pdf

Sobre a proporção de intersexos na população, sobre histórias cabeludas de ativistas atrapalhando o avanço da ciência nessas questões, vide Alice Dreger: Galileo’s Middle Finger. https://g.co/kgs/oiUoOU

Sobre mulheres nascidas com pênis se assemelharem no cérebro a mulheres nascidas com vagina, e sobre homossexuais manifestarem não-conformidade de gênero, vide Bao & Swaab 2011. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/21334362

Sobre disforia estar correlacionada a outros transtornos, ver este estudo escandinavo que relatou que ela é geralmente precedida por outros transtornos e que é muito comum o autismo: https://capmh.biomedcentral.com/articles/10.1186/s13034-015-0042-y

 

 

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ORIENTAÇÃO SEXUAL MASCULINA É INFLUENCIADA

POR GENES, MOSTRA ESTUDO

Fonte: The Guardian. Tradução comentada de Eli Vieira.

14 / fevereiro / 2019

 

(texto original)

Genes examinados no estudo não são suficientes ou necessários para fazer homens serem gays, mas desempenham algum papel na sexualidade, dizem pesquisadores americanos

Um estudo sobre homens gays nos EUA encontrou novas evidências de que a orientação sexual masculina é influenciada por genes.

Os cientistas testaram o DNA de 400 homens gays e descobriram que genes em ao menos dois cromossomos influenciavam se um homem era gay ou hétero.

Uma região do cromossomo X chamada Xq28 [q é o braço longo do cromossomo] teve algum impacto sobre o comportamento sexual dos homens – embora os cientistas não tenham ideia de quais genes na região estão envolvidos, nem de quantos outros estão em outras regiões do genoma.

Outro trecho de DNA no cromossomo 8 também mostrou ter um papel na orientação sexual masculina – embora, novamente, o mecanismo preciso ainda não seja claro.

Pesquisadores especularam no passado que genes ligados à homossexualidade em homens podem ter sobrevivido na evolução porque por acaso faziam as mulheres que os portassem mais férteis. Esse pode ser o caso para os genes na região Xq28, pois o cromossomo X é passado aos homens exclusivamente por suas mães.

Michael Bailey, um psicólogo da Northwestern University em Illinois, demonstrou as descobertas na reunião anual da Associação Americana para o Progresso da Ciência em Chicago nesta quinta-feira. “O estudo mostra que há genes envolvidos na orientação sexual masculina,” disse ele. O trabalho ainda não foi publicado, mas confirma os achados de um estudo menor que despertou polêmica em 1993, quando Dean Hamer, um cientista do Instituto Nacional do Câncer dos EUA, investigou as árvores genealógicas de mais de 100 homens gays e descobriu que a homossexualidade tende a ser herdada. Mais de 10% dos irmãos de homens gays eram também gays, comparados a cerca de 3% da população em geral. Também tios e primos homens do lado da mãe tinham uma probabilidade maior que a média de serem gays.

A associação ao lado materno da família levou Hamer a investigar mais de perto o cromossomo X. No trabalho seguinte, ele descobriu que 33 de 40 irmãos gays herdaram marcadores genéticos similares na região Xq28 do cromossomo X, sugerindo que genes cruciais residiam ali.

Hamer enfrentou uma tempestade quando seu estudo foi publicado. A polêmica se deu em torno das influências de natureza e cultura [nature/nurture] sobre a orientação sexual. Mas o trabalho também despertou expectativas mais dúbias sobre um teste pré-natal para a orientação sexual. O [tabloide sensacionalista] Daily Mail deu como manchete “Aborto é esperança depois de ‘descobertas de genes gays’”. Hamer alertou que qualquer tentativa de desenvolver um teste para a homossexualidade seria “errada, antiética e um terrível abuso da pesquisa”.

O gene ou genes na região Xq28 que influenciam a orientação sexual têm um impacto limitado e variável. Nem todos os homens gays no estudo de Bailey herdaram a mesma região Xq28. Os genes não eram nem suficientes nem necessários para tornar qualquer desses homens gays.

O pensamento falho por trás de um teste genético para a orientação sexual é claro do ponto de vista dos estudos com gêmeos, que mostram que o gêmeo idêntico de um homem gay, que carrega uma réplica exata do DNA de seu irmão, tem mais chance de ser hétero do que gay. Isso significa que mesmo um teste genético perfeito que escolhesse todos os genes associados à orientação sexual seria ainda menos efetivo que jogar uma moeda.

[Eu não teria tanta certeza disso – o geneticista Caio Cerqueira e outros colegas meus, por exemplo, desenvolveram um cálculo de propensão de ter certo tom de pele em humanos modernos e neandertais baseado nos vários genes que influenciam a cor da pele (ver https://lihs.org.br/caio), que é uma característica complexa e multifatorial também. E o teste é considerado melhor que apenas jogar uma moeda. O caso é que usar o teste para propósitos racistas seria tão errado quanto usar um possível teste de propensão à homossexualidade para propósitos homofóbicos ou eugenistas.]

Enquanto os genes de fato contribuem para a orientação sexual, outros fatores múltiplos desempenham um papel maior, talvez incluindo os níveis de hormônios aos quais um bebê é exposto dentro do útero. “A orientação sexual não tem nada a ver com escolha”, disse Bailey. “Encontramos evidências para dois conjuntos [de genes] que afetam se um homem é gay ou hétero. Mas não é completamente determinante; há certamente outros fatores ambientais envolvidos.”

No ano passado, antes que os últimos resultados fossem divulgados, um dos colegas de Bailey, Alan Sanders, disse que as descobertas não poderiam e não deveriam ser usadas para desenvolver um teste para orientação sexual.

“Quando as pessoas dizem que há um gene gay, é uma simplificação exagerada,” disse Sanders. “Há mais de um gene, e a genética não é a história completa. Com o que quer que seja que os genes contribuem para a orientação sexual, você pode pensar nisso como contribuindo tanto para a heterossexualidade quanto para a homossexualidade. [Os genes] contribuem para uma variação na característica.”

Qazi Rahman, um psicólogo no King’s College London, disse que os resultados são valiosos para entender melhor a biologia da orientação sexual. “Isso não é controverso nem surpreendente, e nada com que as pessoas devessem se preocupar. Todas as características psicológicas humanas são herdáveis, isto é, têm um componente genético”, disse. “Os fatores genéticos explicam de 30 a 40% da variação entre as orientações sexuais das pessoas. Entretanto, não sabemos se esses fatores genéticos estão localizados no genoma. Então precisamos de estudos que ‘acham genes’, como este de Sanders, Bailey e outros, para ter uma ideia melhhor de onde os genes em potencial para a orientação sexual podem estar.”

Rahman rejeitou a ideia de que a pesquisa genética pudesse ser usada para discriminar pessoas com base em sua orientação sexual. “Não vejo como a genética poderia contribuir mais para a perseguição, a discriminação e estigmatização de lésbicas, gays, bissexuais e pessoas transgênero mais do que explicações sociais, sociais ou de que seria comportamento aprendido. Historicamente, a perseguição e o tratamento horrendo de grupos LGBT aconteceu porque políticos, líderes religiosos e sociedades viam a orientação sexual como uma ‘escolha’ ou como algo devido à criação inadequada.”

Steven Rose, da Open University, disse: “O que me preocupa não é a que grau, se a algum, nossa constituição genética, epigenética ou neural e o desenvolvimento afetam nossas preferências sexuais, mas o enorme pânico moral e a pauta religiosa e política que cerca a questão.”

 

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23RD OF JULY

RESPOSTA À CARTILHA OBSCURANTISTA

DA IGREJA CATÓLICA

PARA A JORNADA MUNDIAL DA JUVENTUDE

 

(texto original

Entidades ligadas ao Vaticano distribuíram milhares de cópias de um “Manual de Bioética para Jovens” na ocasião da visita do Papa Francisco ao Brasil. Achei curioso o nome, dado que bioética é uma área séria de pesquisa filosófica, completamente secular. A seguir, comento alguns trechos do manual selecionados pela Folha de S. Paulo.

1. “Sejamos realistas: nascemos menino ou menina. A procriação necessita de pai e mãe. A criança precisa de pai e mãe para se desenvolver”.

A Universidade de Cambridge, Reino Unido, já divulgou estudo mostrando que não há qualquer diferença em competência sócio-psicológica entre crianças criadas por casais tradicionais e crianças criadas por casais do mesmo sexo. A realidade é esta, e a “realidade” do “realismo” da Igreja é uma invenção ideológica sem qualquer âncora em fatos. Fonte: https://www.cam.ac.uk/research/news/ive-got-two-dads-and-they-adopted-me

2. "Um menino pelado olha para o próprio pênis e questiona: "Não sou homem? Eu? Então o que é isto?".

Existem meninas que nascem com pênis. Isso é um fato reconhecido por publicações médicas recentes. Vamos falar um pouco da realidade do desenvolvimento embrionário. Até os dois primeiros meses de gestação, desenvolve-se a genitália. Mas só da metade da gestação adiante desenvolvem-se os circuitos cerebrais associados à identidade de gênero. O desenvolvimento da genitália de qualquer organismo com genoma humano, independentemente de haver cromossomo Y ou não, seguirá para o surgimento da vagina na ausência de hormônios masculinizantes.

Existem pessoas XY que se desenvolvem com insensibilidade a androgênios – são mulheres com vagina, em sua maioria heterossexuais. Isso fica difícil de conciliar com o dogma de que Deus criou primeiro o homem e depois modificou-o em mulher (como acreditava Tomás de Aquino, notório misógino que defendia que mulheres eram formas degeneradas de homem), quando nos detalhes genéticos do desenvolvimento embrionário são estruturas mais tipicamente femininas que servem como substrato para o desenvolvimento de estruturas mais tipicamente masculinas, quando hormônios e fatores de transcrição acionam cascatas bioquímicas de desenvolvimento.

Como existe uma independência temporal entre desenvolvimento do sexo biológico genital e desenvolvimento de estruturas associadas a diferentes gêneros no cérebro, é natural, possível, e sempre acontecerá numa minoria da humanidade que o sexo biológico se desenvolva de uma forma e o “sexo cerebral” se desenvolva de outra, de forma que a também importante contribuição do ambiente cultural atuará sobre cérebros já mais propensos a aceitar uma categoria ou outra. Casos de pessoas transgênero na pré-infância não são desconhecidos, inclusive em famílias cristãs, que só aumentam o sofrimento da família e de seus filhos transexuais ao tentar mudar a identidade de gênero que começou a se formar já no útero.

Fonte: Ai-Min Bao (Ministério da Saúde da China) & Dick F Swaab ( Instituto Holandês de Neurociência e ao Instituto da Real Academia Holandesa de Artes e Ciências). 2011. Sexual Differentiation of the Human Brain: Relation to Gender Identity, Sexual Orientation and Neuropsychiatric Disorders. Frontiers in Neuroendocrinology 32(2): 214–226.

A não-aceitação preconceituosa de pessoas transgênero (ou transexuais), diante dos fatos acima, é nada mais nada menos que um preconceito, pois, ainda que alguém acredite que seja doentio ou imoral ser trans (posição que carece de argumentos), não pode culpar trans por sê-lo e muito menos esperar que consigam mudar sua identidade sexual ou de gênero. A Igreja Católica Apostólica Romana é transfóbica em sua cartilha.

O mesmo pode ser dito quanto à orientação sexual e a condição de qualquer pessoa como heterossexual, bissexual ou homossexual. Quem apresenta a orientação sexual majoritária e aprovada pela Igreja precisa no mínimo examinar-se honestamente e estabelecer quando foi que escolheu se sentir atraído por um sexo/gênero diferente do seu. E a resposta honesta é que não escolheu, e portanto não tem qualquer elemento evidencial para alegar, como faz o pastor fundamentalista Silas Malafaia, que homossexuais escolhem ser homossexuais. Poucos meses atrás a Sociedade Brasileira de Genética desmentiu essas alegações do pastor em nota oficialhttps://sbg.org.br/2013/03/manifesto-da-sociedade-brasileira-de-genetica-sobre-bases-geneticas-da-orientacao-sexual/ ).

Felizmente, os católicos que são contra os direitos de adoção dos casais do mesmo sexo, ou contra seu casamento civil sob os auspícios de um país laico, já são minoria, como publicado pela Folha de S. Paulo. Isso atesta que a Santa Sé continua mais conservadora que seus próprios fiéis, por isso produz cartilhas como esta tentando trazê-los para posições ultrapassadas e que só aumentam o sofrimento no mundo.

3. “Recusar a adoção aos homossexuais não representaria homofobia? Não, porque a questão é outra. Ter um filho não é um direito! O filho não é um bem de consumo, que viria ao mundo em função das necessidades ou dos desejos dos pais. Embora o fato de alguém não poder ter filhos seja fonte de sofrimento, essa reivindicação dos lobbies homossexuais não é legítima”.”

Sim, recusar um direito dos casais do mesmo sexo é um preconceito, e o nome é homofobia. Sim, a Igreja está defendendo uma posição homofóbica, e trocar o nome do preconceito ou tentar se distanciar do nome que ele tem não apaga o fato de que o Vaticano, representando pela CNBB, mandou um advogado ao STF, no julgamento que reconheceu a união estável homoafetiva, para tentar barrar os direitos desses casais e impedi-los de serem reconhecidos como família. Tudo isso numa interferência explícita e inconveniente numa estrutura de poder secular que se declara como tal, laica, a qual a Igreja está usando neste momento para pagar com dinheiro público brasileiro por uma visita que de “diplomática” e “visita de chefe de Estado” não tem absolutamente nada. O nome que se dá a subverter a laicidade Constitucional do Brasil para proveito próprio, mantendo privilégios e falta de igualdade entre as crenças dos contribuintes brasileiros, é tráfico de influência, e os governantes que permitiram isso são igualmente culpados.

E sim, ter um filho é um direito, e não, como a Igreja acredita, um dever. Crença que ela faz questão de impor nos úteros de todas as mulheres brasileiras, que são impedidas de decidir sobre suas próprias gestações por causa de outros tráficos de influência religiosa mais antigos que criminalizaram o aborto. Isso porque a própria história da Igreja mostra um notável dissenso sobre a questão, com alguns teólogos permitindo o aborto até certa fase do desenvolvimento, e outros decidindo dogmaticamente e magicamente que a união dos gametas é a origem do indivíduo. O fato da Bíblia ter sido escrita num período histórico em que ninguém sabia o que era ovócito nem espermatozoide não impede o clero de se intrometer impertinentemente nos direitos civis brasileiros, de querer palestrar sobre assuntos que são da competência de médicos e profissionais das ciências biológicas e ciências humanas. E por falar em médicos, o Conselho Federal de Medicina já deu a correta opinião de que o aborto deve ser permitido até a décima-segunda semana (período seguro anterior ao desenvolvimento do cérebro, o mesmo órgão cuja morte dá o direito às famílias para desligar os aparelhos e doar os órgãos de um indivíduo), pela simples razão de que a criminalização ideologicamente patrocinada pela Igreja Católica é assassina e faz diversas vítimas anualmente neste país. Vítimas essas que só tiveram o azar de ter se desenvolvido com a identidade de gênero e sexo biológico femininos, que a Igreja rejeita de seu quadro eclesiástico e com os quais tem uma longa história de desprezo, apesar da simbologia de Maria.

Já está ficando para o passado os tempos em que a Igreja Católica percolava pela cultura e pelo poder brasileiros, infelizmente usando-os nem sempre de forma sábia. Os católicos são em sua maioria mais progressistas e respeitadores dos direitos de seus concidadãos que a instituição bilionária à qual se afiliam e com a qual frequentemente discordam, bastando usar o exemplo do uso da camisinha para atestar isso.

Por falar em camisinha, foi notório que a primeira desistência de papado em quase 600 anos aconteceu neste momento, e foi feita pelo mesmo ex-papa que passou por cima do conhecimento científico alegando que a camisinha pioraria a incidência da AIDS na África. Temos nesta cartilha aos jovens brasileiros mais um exemplo de palpite eclesiástico errado no território da ciência. Além de termos, é claro, justificativas as mais absurdas para sorver mais de 100 milhões do erário público para um líder religioso que não representa todas as crenças no Brasil.

O que me pergunto é onde foi parar a ideia de dar “a César o que é de César”. Temos diversos césares se escondendo com batinas.

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Eli Vieira biólogo geneticista, ex-presidente da LiHS, feliz em compartilhar um país com quem acredita em poder público laico em que todos são bem-vindos e ninguém é privilegiado.

 

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